A estratégia sem lógica de Trump e o desmonte da ordem mundial, na visão de ex-embaixador nos EUA e na China

A estratégia sem lógica de Trump e o desmonte da ordem mundial, na visão de ex-embaixador nos EUA e na China


A introdução de tarifas de importação anunciadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, contra os principais parceiros comerciais do país – México, Canadá e China – não tem lógica alguma e só vai prejudicar o comércio internacional e os próprios americanos.

É o que diz, sem meias palavras, o diplomata Roberto Abdenur. Aos 82 anos, com um longo currículo no Itamaraty – onde serviu de 1963 a 2007, atuando como embaixador do Brasil não só nos Estados Unidos, como na China, Alemanha, Áustria e Equador, entre outros postos -, Abdenur atualmente é conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), um think-tank independente.

“Vamos ter tempos difíceis pela frente”, adverte o veterano diplomata, nesta entrevista ao NeoFeed onde mostra que segue afiado em sua análise da conjuntura global. “Nunca vi, em mais de seis décadas acompanhando a diplomacia e o comércio internacional, um mundo tão caótico, instável, turbulento e perigoso como o de hoje.”

Na segunda-feira, 3 de fevereiro, após Trump anunciar no final de semana tarifas de 25% para importação de produtos do México e do Canadá, além de 10% da China, os mercados globais reagiram mal.

A presidente do México, Claudia Sheinbaum, porém, revelou um acordo com Trump sobre segurança na fronteira, o que levou os EUA a suspenderem as tarifas por 30 dias. O Canadá, por sua vez, decidiu retaliar, impondo tarifas de 25% às exportações americanas.

Economistas do Goldman Sachs estimam que as tarifas sobre o Canadá e o México, se mantidas, aumentariam a inflação dos EUA em até 0,7% e reduziriam o PIB do país em 0,4%.

Para Abdenur, as medidas de Trump fazem parte do desmonte da ordem mundial criada pelos próprios Estados Unidos e em vigor desde o fim da Segunda Guerra.

“Os EUA estão deixando de agregar e abrir mercados para ampliar o uso do imenso poder político, diplomático, tecnológico, econômico e sobretudo comercial de maneira unilateral”, diz, referindo-se à política do porrete tarifário e protecionista de Trump, além de ameaças, como invadir o Panamá e anexar a Groelândia.

Esse processo teve início após a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), “que os EUA apoiaram ingenuamente, achando que levaria o país à democratização”, segundo Abdenur, e prosseguiram com a transferência das plantas da indústria americana para a Ásia e o esvaziamento da OMC pelos EUA, acentuado desde o governo Obama.

Para o diplomata, nenhum país ou bloco obterá vantagem com essa nova ordem do comércio global. Mas o bloqueio das exportações americanas em retaliação às tarifas pode abrir mercado para o agronegócio brasileiro na Europa, Ásia e Oriente Médio.

Abdenur, porém, acredita que a política de tarifas de Trump dificilmente sobreviverá no longo prazo, mas tampouco vai desaparecer no curto prazo. “Nos dois primeiros anos de governo, os efeitos deletérios de tudo o que Trump está fazendo para o povo americano devem reforçar a voz dos democratas”, diz.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista de Roberto Abdenur:

O presidente Donald Trump anunciou tarifas contra importações de México, Canadá e China e prometeu fazer o mesmo com a União Europeia. Juntos, esses atores representam 60% das importações dos EUA. Qual é a lógica?
Não há lógica alguma. Trump ganhou eleição focando em dois temas: custo de vida elevado e a imigração ilegal. A imposição de tarifas deve aumentar a inflação nos EUA e a deportação em massa tende a gerar inúmeros prejuízos pela falta de mão de obra que vai causar na colheita das safras, no trabalho em restaurantes e até na faxina das casas. Ou seja, é o triunfo da insensatez. Vamos ter tempos difíceis pela frente. Nunca vi, em mais de seis décadas acompanhando a diplomacia e o comércio internacional, um mundo tão caótico, instável, turbulento e perigoso como o de hoje.

“Nunca vi, em seis décadas, um mundo tão caótico, instável, turbulento e perigoso como o de hoje”

Quais os prejuízos para os EUA com a adoção dessa estratégia?
Essa estratégia vai prejudicar o país em múltiplas áreas porque os países afetados vão retaliar a sobretaxação de tarifas. Entre 60% e 70% das ações anunciadas ou previstas por Trump são contrárias aos interesses dos EUA. Além das tarifas, ele retirou o país do Acordo de Paris e da Organização Mundial de Saúde (OMS), o que vai inviabilizar muitas pesquisas sobre vacinas e combate a pandemias futuras.

Qual o objetivo de Trump?
Por trás dessa cartada está o desmonte da ordem mundial criada pelos próprios Estados Unidos e em vigor desde o fim da Segunda Guerra. Os EUA estão deixando de agregar e abrir mercados para ampliar o campo para o uso do imenso poder político, diplomático, tecnológico, econômico e sobretudo comercial de maneira unilateral. Daí a proposta de Trump de invadir o Panamá, anexar a Groelândia e, em tom de piada, incorporar o Canadá como 51º estado dos EUA. Isso ficou claro quando Trump e o secretário de Estado, Marco Rubio, disseram, para meu espanto e perplexidade, que a ordem internacional vigente não é boa para os EUA.

Nas justificativas de Trump para imposição de tarifas pesam mais argumentos políticos – como controle de imigração – do que comerciais. Isso reforça que as sobretaxas seriam apenas uma arma para negociar outros temas, com tendência de serem revogadas rapidamente?
Este cenário é plausível, mas não muito provável. Pode até acontecer no curto ou no médio prazo. Trump está emitindo sinais apaziguadores em relação à China, percebendo que uma ampla guerra comercial e uma confrontação estratégica na área de segurança não são boas para os EUA. Como executor de uma diplomacia transacional, é muito possível que isso aconteça. Mas enquanto não acontecer, haverá prejuízos para o mundo inteiro. Será não apenas a dissolução da globalização, mas situação de turbulência de todo o comércio e economia internacionais.

“Trump está emitindo sinais apaziguadores em relação à China. Mas enquanto não acontecer, haverá prejuízos para o mundo inteiro”

Uma mudança radical nas cadeias de suprimentos globais causaria impacto muito grande e levariam anos para se consolidar. Quais países ou blocos seriam mais beneficiados?
Numa primeira avaliação, nenhum país ou bloco terá condições de obter vantagens diante do fechamento do mercado americano. O que resta no mundo é relativamente pouco. A União Europeia, por exemplo, terá condições de negociar com o Mercosul ou, eventualmente com México e Canadá, África Oriente Médio e alguns países da Ásia. Mas é um campo relativamente limitado para obtenção de vantagens. Ou seja, haverá alguns ganhos relativos, mas não tão substantivos a ponto de corresponder à totalidade dos prejuízos sofridos com o fechamento do mercado americano.

O sr. acredita que a estratégia de Trump seria forçar mais acordos comerciais bilaterais com outros países, onde os EUA poderiam levar mais vantagem?
Acho difícil. Mesmo que chegue a um entendimento com a China para reduzir o escopo de guerra comercial, Trump deve adotar uma política protecionista em paralelo à política externa isolacionista. Não vejo Trump assinando acordos, o que ele pode fazer pontualmente é, se obtiver certas vantagens, isentar esse país das tarifas punitivas com as quais vem acenando.

Os EUA se consolidaram como superpotência econômica, com participação no PIB global de mais de 25%. Mas sua presença no comércio mundial vem caindo e hoje é bem menor, de 15%. O que causou essa queda?
Trata-se de um processo que teve início em 2001, com os atentados da Al-Qaeda e, principalmente, com a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), com apoio americano. Os EUA tinham uma visão ingênua, achando que a China ia evoluir para uma nação mais democrática. Nunca acreditei nisso, era embaixador na China na época do massacre da Praça da Paz Celestial (1989) e era claríssimo que isso nunca iria acontecer. Na verdade, houve piora, porque Xi Jinping está instalando uma ditadura mais dura do que a de Deng Xiaoping, que abriu a economia do país em 1978, e de seus sucessores.

A presença da China no comércio global aumentou na mesma proporção do recuo americano?
Grande parte do recuo americano se deve ao efeito do fenômeno da globalização, com grandes empresas dos EUA transferindo suas plantas para China, México ou Canadá, privando a capacidade exportadora do país de muitos elementos de força. Por outro lado, houve crises econômicas nos EUA que contribuíram para isso, como a de 2008 e, anos depois, a pandemia. O poder global da China, porém, cresceu muito desde a entrada na OMC, atuando no mundo inteiro e na ONU com uma diplomacia muito ativa.

Como é essa diplomacia?
A China já é o principal parceiro comercial de mais de cem países. Veja a diferença com os EUA: Xi Jinping esteve no Brasil recentemente e assinou 37 acordos comerciais. Quantos acordos os EUA assinaram com o Brasil nas últimas décadas? Só me lembro de um, para viabilizar o uso da base de Alcantara para lançamento de satélites e foguetes americanos, o que acho que não vai acontecer.

“Xi Jinping esteve no Brasil recentemente e assinou 37 acordos comerciais. Quantos acordos os EUA assinaram com o Brasil nas últimas décadas?”

Muito se fala em desglobalização, mas desde 2017 o comércio internacional se manteve estável, respondendo por 60% do PIB global. Que tipo de mudança essa política de Trump pode desencadear no comércio global?
Os EUA destruíram a OMC há muito tempo, antes mesmo do Trump – desde Obama, inviabilizaram a OMC no que tinha de mais importante, que é o mecanismo de solução de controvérsias. Os EUA bloquearam a indicação de técnicos para esse mecanismo. A OMC está paralisada há muitos anos. Não vai desaparecer, mas perdeu relevância. Isso é caótico, pois não tem mais a cláusula de nação mais favorecida aplicada de forma transversal – ao contrário, o que temos agora são tarifas aplicadas de forma ampla, com algumas diferenças conforme o resultado das pressões e negociações impostas por Trump.

Como o Brasil pode ser beneficiado dessa pressão das tarifas dos EUA contra os vizinhos, China e União Europeia? Deve ampliar o comércio com esses países, que devem barrar as exportações americanas?
O agronegócio brasileiro claramente se beneficiará, pois exporta múltiplos produtos que competem com os EUA, como soja, carne e laranja. Dadas as eventuais retaliações de outros países contra os EUA, isso ampliará muito o mercado para o Brasil na Europa, Oriente Médio e Ásia em geral.

A balança comercial do Brasil com os EUA está bem equilibrada. Mesmo assim, é possível imaginar uma ofensiva de sobretaxas de Trump contra o Brasil?
Em relação ao Brasil, minha preocupação com o Trump é mais de ordem ideológica. Ele é o campeão da extrema direita mundo afora. O Marco Rubio, secretário de Estado, filho de imigrantes cubanos, é um crítico a regimes de esquerda e inclui o Brasil não como alvo principal, mas como um país com um governo de esquerda indesejável, por mais moderada que seja. O Brics, porém, é um ponto de preocupação para o Brasil.

Por quê?
Estamos numa situação delicada, pois o Brasil terá a presidência dos Brics e o principal item da pauta da reunião de julho é a busca de alternativas ao dólar para as transações comerciais dos países do bloco. O presidente Lula terá de manejar com muito cuidado porque o Trump, em duas ocasiões, ameaçou os Brics se seguirem adiante com a proposta, prometendo impor 100% de tarifas de exportações do bloco.

Mas o Brics não tende a recuar em relação a essa pauta do dólar, uma vez que não é um tema essencial?
A China não vai abrir mão, até por questão de honra, e vai continuar pressionado pela alternativa ao dólar. Vi com muito bons olhos a formação inicial do bloco, com quatro países-membros (China Brasil, Índia e Rússia) mais a África do Sul. Mas fiquei preocupado com as sucessivas expansões do Brics por pressão da China – principalmente com a entrada do Irã, que Lula não conseguiu impedir. O Brics passou a ter uma postura anti-EUA, claramente, e o Lula tem ou tinha a ilusão de que o Brics possa melhorar a governança global. Não é possível desde que a Rússia invadiu a Ucrânia. Lula ficará entre dois fogos, uma situação descontável

Quais os riscos para nossas exportações caso os EUA incluam o Brasil na lista de sobretaxação?
Há uma diferença qualitativa entre nossas exportações para a China e para os EUA. Na nossa pauta de exportações para a China, os produtos manufaturados correspondem a apenas 20%. Para os EUA, sobem para 70% ou 80% – muito é resultado de comércio intrafirmas, multinacionais daqui exportando para a matriz. Em qualidade, nosso comércio com os EUA só perde para com o do Mercosul, que por sinal tende a desaparecer como união aduaneira, voltando a ser apenas uma associação de livre-comércio, por pressão do presidente da Argentina, Javier Milei. Há ainda preocupação com a Embraer.

Que risco a Embraer corre?
Um aumento brutal de tarifa sobre os aviões da Embraer vai afetar duramente a empresa, que terá de buscar novos mercados na Europa e Oriente Médio. Mas custa a crer que Trump imponha tarifas à Embraer, porque os aviões da empresa contêm de 30% a 40% de seus componentes provenientes dos EUA. Vendemos o produto acabado, mas usamos os insumos americanos em grande escala. De qualquer forma, é um caso especial.

Com tantos prejuízos, incluindo para os EUA, essa política de tarifas elevadas de Trump tem eficácia no longo prazo? Até quando ele consegue manter essa estratégia?
Dificilmente sobreviverá no longo prazo, mas tampouco vai desaparecer no curto prazo. Nos dois primeiros anos do governo Trump, os efeitos deletérios de tudo o que está fazendo para o povo americano deve reforçar a voz dos democratas. E provavelmente, como costuma acontecer, historicamente, nas eleições de meio de mandato presidencial, daqui a dois anos, os republicanos podem ter derrotas impressionantes.





Fonte: Neofeed

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