As memórias do “poderoso” Al Pacino

As memórias do “poderoso” Al Pacino


Quando, na década de 1970, filmava na Sicília O Poderoso Chefão, o quase desconhecido Al Pacino não esperava passar por tantos apuros. Na cena do casamento de seu personagem, o diretor Francis Ford Coppola orientou que ele conversasse com os moradores locais, integrantes da figuração. Não foi possível. Nenhum deles falava inglês. E o ator, apesar de ter crescido em uma família italiana em Nova York, não dominava o italiano.

Em outro momento, Coppola pediu aos recém-casados que valsassem. Pacino não sabia dançar. No final da cena, o casal precisava ir embora de carro. Qual não foi a surpresa quando o ator, meio sem jeito, explicou ao cineasta que não sabia dirigir. Coppola olhou para ele, berrando: “Onde eu estava com a cabeça quando contratei você?”. E, emendou: “O que é que você sabe fazer?”.

O livro Sonny Boy: Autobiografia, lançada no Brasil, pela Editora Rocco, poderia trazer em suas 320 páginas somente histórias assim, para deleite de seus fãs. Mas Pacino preferiu dedicar um bom número de páginas a contar a infância miserável, quase sempre solitária. O pai abandonou a família e a mãe, apesar de bondosa, sofria de problemas psiquiátricos.

O “Sonny boy” do título, em tradução literal, quer dizer “filhinho”. Escreve ele: “O cinema era um lugar em que minha mãe podia se esconder no escuro, sem ter que dividir seu Sonny Boy com mais ninguém. Esse era o meu apelido para ela, o que ela primeiro me deu, antes de todo mundo também começar a me chamar de Sonny. Foi algo que ela pegou do cinema, onde ouviu Al Jolson cantar uma música que ficou muito popular”.

O astro conta sobre os primeiros anos com o olhar de um octogenário que não só narra como interpreta lembranças. Ele define a mãe como uma mulher linda, mas delicada e de emoções frágeis. A cena dela sendo levada em uma ambulância, depois de tentar o suicídio, marcaria o filho para o resto da vida. Ela sobreviveu e ele foi viver nas ruas, afirma. “Quando eu era criança, eram os relacionamentos com meus amigos da rua que me sustentavam e me davam esperança”, diz.

No bairro, ao lado de três amigos inseparáveis, que se perderiam no crime, “eu parecia vencer a morte com frequência. Eu era como um gato, com muito mais do que sete vidas. Tive mais acidentes e confusões do que sou capaz de contar, então vou escolher alguns que me saltam à memória e têm maior importância para contar”.

“Foi um gesto tão simples, mas tão raro”

Curioso como relata com riqueza de detalhes, sete décadas depois, as memórias da adolescência com os amigos, as brincadeiras, os perigos, os refúgios no alto dos prédios. A paixão pelo beisebol estimulada pelo avô, observa ele, talvez o tenha livrado da delinquência e das drogas.

Ele gostava de jogar, mas se destacava mesmo nas peças da escola. Os colegas o chamavam de “o próximo Marlon Brando”. Fazer filmes não passava por sua cabeça, só o teatro. Aos 16 anos, teve de largar os estudos para trabalhar e sustentar ele próprio e a mãe.

Com 372 páginas, o livro custa R$ 79,90 (Foto: Divulgação/Editora Rocco)

A infância do ator foi muito solitária (Foto: Cortesia de Mark Scarola)

A interpretação sensível de um tenente-coronel cego em Perfume de Mulher, de 1992, rendeu a Al Pacino seu único Oscar (Foto: imdb.com)

No livro, Pacino revela como as dificuldades da vida ajudaram ele a compor muitos de seus personagens,, como Tony Montana, de “Scarface” (Foto: Divulgação/Editora Rocco)

Nas peças da escola, Al Pacino era chamado pelos colegas de “o próximo Marlon Brando” Foto: divulgação/Editora Rocco)

“Blanche Rothstein, minha professora, tinha grandes planos para mim. Um dia, ela subiu os cinco andares do nosso prédio até o apartamento da minha família porque queria falar com minha avó. Não estava lá para me dar uma bronca, mas sim para me encorajar. ‘Este garoto precisa ter permissão para continuar atuando’, disse ela à minha avó. ‘É o futuro dele’. Foi um gesto tão simples, mas tão raro. Ninguém nunca mais fez esse tipo de esforço, ao menos não por mim”, conta o ator.

Como não tinha dinheiro, limpava e varria os corredores da escola de teatro, até que ganhou uma bolsa. Descobriu que para ser melhor, tinha de alcançar o brilhantismo literário de um de seus professores. Para pagar o aluguel, tentou ser garçom, mas só lhe pagavam com as sobras das mesas. “Esse era o nível de fome que eu passava”, lembra. Às vezes, comia sanduíche de bolachas recheadas com ketchup, que ganhava se comprasse uma caneca de cerveja.

Enquanto trabalhava em uma empresa de mudanças, entrava nas bibliotecas para se aquecer do frio e acabou virando virou um leitor voraz. Em seu tempo livre, andava de metrô até o fim da linha, lendo Chekhov e Balzac. Ou então recitava Eugene O’Neill e Shakespeare em voz alta, em becos desertos. Aos 26, foi admitido no famoso Actors’ Studio de Lee Strasberg, em Nova York.

“Ei, mãe, você viu o que aconteceu comigo?”

À medida que o livro avança, as peças da narrativa se encaixam e Pacino revela como as dificuldades da vida ajudaram-no a compor muitos de seus personagens. Explica, por exemplo, a complexa personalidade que criou para o policial Serpico, a partir do mundo violento onde viveu.

Não foi diferente ao fazer o desafiador Tony Montana, na refilmagem definitiva de Scarface. Ou o ladrão de banco Sonny Wortzik, em Um dia de cão. Ou mesmo o relutante chefe da máfia Michael Corleone, da trilogia O Poderoso Chefão.

Pacino sempre chamou mais atenção em aventuras policiais ou criminosas, um mundo que conheceu de perto. Tanto que seu empresário de longa data Martin Bregman costumava se gabar para os chefões da indústria ou para quem quisesse ouvir: “Você quer um filme de sucesso? Coloque Al Pacino no cartaz de cinema com uma arma na mão”.

Por ironia, a única vez que ganhou um Oscar foi por sua interpretação sensível de um tenente-coronel cego em Perfume de Mulher, de 1992.

O ator, ainda em plena atividade profissional, fez um livro à altura de sua importância na história do cinema.

E que poderia ser assim resumido: “Esta vida é um sonho, como diz Shakespeare. Acho que a parte mais triste de morrer é que você perde suas memórias. As memórias são como asas: elas nos mantêm voando, como um pássaro ao vento. Se eu tiver sorte, se for para o céu, talvez possa me reencontrar com minha mãe lá. Só quero ter a chance de me aproximar dela, olhar em seus olhos e simplesmente dizer: ‘Ei, mãe, você viu o que aconteceu comigo?’”.



Fonte: Neofeed

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