Foram necessários dois anos de pesquisa para cavoucar as tantas camadas de tempo — e mesmo de espaço — que encobriram a história da diáspora judaico-marroquina para a floresta amazônica, agora trazida à tona em exposição do Museu Judaico de São Paulo.
Em Judeus na Amazônia, mais de 200 itens, entre obras de arte históricas ou comissionadas, vídeos, documentos e registros fotográficos, recuperam a memória dessa imigração, ocorrida entre 1810 e 1930, quando centenas de famílias vieram de cidades como Tânger, Tetuan, Fez e Marrakesh.
Esses judeus já teriam permanecido por mais de três séculos no Marrocos, após serem expulsos da Península Ibérica durante a Inquisição, entre os séculos 12 e 18. Segundo a cronologia da exposição, “fatores econômicos, sociais e políticos” teriam causado a segunda onda migratória, desta vez da “aridez das terras marroquinas” para a “abundante floresta amazônica”.
Os imigrantes não se estabeleceram somente nas capitais Manaus e Belém, mas também em Parintins e Itacoatiara, no Amazonas, e Gurupá e Cametá, no Pará — onde havia uma das mais antigas sinagogas do Brasil.
Eles seguiam uma tradição de comércio, adentrando os estados como mascates dos rios (os chamados “regatões”), em embarcações que não raro traziam nomes judaicos como Levy ou Bennaroch. Na mostra, há indícios, por assim dizer, alegóricos, de como a cultura judaica reverberou em costumes locais ao longo do tempo.
A exemplo da estrela de cinco pontas na fronte do Boi Caprichoso, do Festival de Parintins. Ela seria uma alusão à estrela de Davi, emblema desenhado ou afixado aos escudos dos guerreiros do rei Davi, na tradição judaica.
Os dois triângulos sobrepostos, representando as três letras do alfabeto hebraico, que compõem o nome Davi.
Também existem referências explícitas à própria estrela, como aquela pintada em um vaso da típica cerâmica da Ilha do Marajó, no Pará.
Ou mesmo evidências desveladas literalmente a facão, como as “necrópoles verdes” judaicas, encontradas na floresta, como é o caso do Cemitério Judaico de Gurupá, descoberto em 2017, na região do Baixo Rio Amazonas. Em processo de tombamento, esses cemitérios apontam que, embora não tivessem uma prática religiosa em sinagogas, aqueles imigrantes queriam ser enterrados como judeus.
Um projeto de tal monta dificilmente sairia do papel não fosse a multidisciplinaridade de sua curadoria, de que fazem parte Aldrin Moura de Figueiredo (historiador), Renato Athias (antropólogo), Mariana Lorenzi (Coordenadora de Curadoria e Participação do MUJ) e Ilana Feldman (professora, pesquisadora, ensaísta e curadora independente).
Foi Ilana quem plantou a semente para a exposição quando assumiu a curadoria geral do museu, em 2021, ano de sua inauguração, antes de se tornar professora adjunta na Escola de Comunicação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ).
A relação da curadora com o assunto não poderia ser mais próxima: “Minha mãe é de família judia marroquina de Belém, no Pará. Ela é filha de uma paraense, nascida no Marrocos, com um judeu que veio da Bessarábia, hoje Moldávia. É dele que vem o nome Feldman. Minha mãe vem de uma linhagem de matriarcas marroquinas, das Benoliel Sabat”, conta ela, em conversa com o NeoFeed.
Não à toa, essas matriarcas têm uma presença de peso na exposição, compondo um de seus 13 núcleos. Segundo Ilana, as mulheres elencadas pela mostra são, em grande parte, matriarcas de famílias muito grandes. “Em geral, nessa cultura marroquina-amazônica, as mulheres têm um papel muito forte, de grande influência”, afirma.
“Primeiro, foi graças a elas que se cultivou o judaísmo no ambiente doméstico, quando não havia sinagogas ou rabinos. Assim como na transmissão desses valores, da culinária, dos rituais, da memória, algo fundamental para a preservação da identidade judaica na Amazônia. E também se inscreveram na vida pública e social”.
Ilana conta ainda que do lado maternal de sua genealogia houve mulheres com mais de uma dezena de filhos, que exerciam uma liderança inclusive espiritual. Algumas delas são destaques da exposição, como Belízia (tataravó de Ilana), a quem toda a família chamava de Mãe Vida; sua filha, Alia Benoliel Sabat, e duas de suas netas, Sultana e Feliz Benoliel, jornalista ligada a movimentos feminista, sufragista e operário, nos anos 1920 e 1930.
Tia da mãe de Ilana, Sultana Levy Rosenblatt se tornou, em 1951, a primeira mulher a escrever um romance na Amazônia, Uma Grande Mancha de Sol, presente na exposição. Há também outros de seus livros em exibição, e cópias de sua crônica Como viemos parar na Amazônia estão à disposição dos visitantes.
Em tempo: uma parte expressiva dos judeus de origem marroquina migraram, ao longo do século 20, sobretudo para o Rio de Janeiro, mas também Recife e São Paulo, entre outras capitais brasileiras.
Os registros de suas trajetórias, no entanto, permanecem desconhecidos do grande público, e estavam tão dispersos que o museu realizou uma chamada pública para reunir alguns dos itens hoje em exibição.
Vinte e dois deles, como fotografias, documentos e até castiçais para o Shabbat, o dia do descanso dos judeus, vieram da mãe de Ilana, Keyla Belizia. O que reforça mais ainda a papel fundamental dessa genealogia feminina na transmissão da história dos Judeus na Amazônia.