Invisíveis, os quintais são instrumentos poderosos contra a fome no Brasil

Invisíveis, os quintais são instrumentos poderosos contra a fome no Brasil


As cidades brasileiras escondem um tesouro inestimável na luta contra a insegurança alimentar e nutricional — os quintais. Com 80% da população vivendo em casas, são 171,3 milhões de moradores em 59,6 mil imóveis. Há de se presumir, portanto, que exista muita terra com potencial produtivo, espalhada país afora.

Um problema, no entanto. Onde essas áreas estão, quantas são, o que poderiam cultivar e em que quantidades, ninguém sabe dizer com exatidão.

“A maioria absoluta do solo urbano é formada por quintais, mas esses locais não são vistos”, diz Fabio Angeoletto, professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão e Tecnologia Ambiental da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), no Mato Grosso, em entrevista ao NeoFeed. “E os quintais têm uma importância enorme não apenas para a segurança alimentar, mas também para a conservação da biodiversidade”, completa ele, coordenador ainda da Associação Pessoas Unidas pelo Meio Ambiente, Agricultura e Sociedade (Pumas), no Rio Grande do Sul.

E, como um modelo de prática da agricultura urbana, os chamados quintais produtivos podem garantir a chegada de comida fresca e nutritiva aos desertos alimentares, fortalecer a agroecologia e promover renda extra para as famílias com a venda do excedente do que é cultivado.

Em setembro passado, o governo federal lançou o Programa Quintais Produtivos das Mulheres Rurais, por meio dos ministérios do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

O projeto era uma reivindicação do movimento Marcha das Margaridas, grupo de defesa dos direitos das trabalhadoras rurais. A ideia é estruturar 92 mil quintais produtivos no Brasil, até 2026, mediante o fomento para a aquisição de insumos e equipamentos, assistência técnica e apoio para a comercialização da produção.

A inciativa é bem-vinda, claro, mas seu alcance é muito pequeno. Para se ter ideia, recentemente, o professor Angeoletto orientou uma tese de mestrado na UFR que catalogou 62 mil quintais apenas em Rondonópolis — cidade de porte médio, com uma população estimada em cerca de 250 mil habitantes. Ou seja, há uma imensidão de terra a ser descoberta e cultivada.

Enquanto isso, ações organizadas por ONGs criam quintais produtivos pelo país, sobretudo no Nordeste. Uma delas é a Quintada dos Quintais, do Instituto Novo Sertão, vencedora do prêmio Pacto Contra a Fome 2023, na categoria promoção da segurança alimentar.

Da carência à fartura

Tudo começou em 2012, quando o paulistano José Carlos Brito, formado em administração de empresas com foco em gestão pública, saiu de São Paulo como missionário evangélico com destino a Betânia do Piauí, município do semiárido com cerca de 6 mil habitantes, a 500 quilômetros da capital Teresina.

“Fiquei impressionado com a falta de apoio para essa população que sempre lidou com escassez hídrica e vulnerabilidade social”, diz ele, em conversa com o NeoFeed.

A Quintada dos Quintais rende uma renda média R$ 250 semanais para cada família agricultora (Foto: Instituto Novo Sertão)

Formado em administração, o paulistano José Carlos Brito, o Zé da Água, é o idealizador do Instituto Novo Sertão, responsável pelo programa de quintais produtivos (Foto: Instituto Nova Sertão)

“A maioria absoluta do solo urbano é formada por quintais, mas esses locais não são vistos”, diz o professor Fabio Angeoletto (Foto: Arquivo Pessoal)

Três anos depois, Brito, agora conhecido no lugar com Zé da Água, decidiu se mudar de vez para a cidade, onde funda o Instituto Novo Sertão. “Queríamos garantir oportunidades para o sertanejo”, lembra.

E foi o que se fez. As famílias participantes aprenderam como plantar e colher, conforme os preceitos da agroecologia. Antes, os moradores da região não cultivavam praticamente nada e tinham o hábito de queimar o lixo no quintal de casa — o que castiga ainda mais um solo já difícil de trabalhar. “Passei três anos sem comer alface, porque ninguém produzia por aqui”, conta Zé da Água.

A produção de verduras, legumes e hortaliças para consumo próprio logo se tornou farta. Veio então a ideia de comercializar o excedente. E assim nasceu a Quitanda dos Quintais, uma espécie de feira semanal, onde os produtores vendem o alimento produzido em suas casas.

As três famílias do início do projeto hoje são 80. Um canteiro pequeno, por exemplo, rende por semana, em média, R$ 250 para cada agricultor. Coentro, cebolinha e alface são os mais produzidos. Atualmente, os participantes do projeto colhem três toneladas de alimentos, por ano.

Os produtores  hoje vendem ainda para três comércios locais e para a prefeitura, que usa a produção na merenda das escolas.

Agora, o Instituto Novo Sertão pretende ajudar as famílias na criação de uma associação, para facilitar a venda e distribuição dos produtos, além de levar o projeto para outras cidades da região.

A história de Zé da Água faz lembrar o poeta Manoel de Barros (1916-2014), em Meu quintal é maior que o mundo. Na antologia, o autor cuiabano fala sobre a importância do pertencimento desse pedaço de terra, com seus bichos, plantas, auroras e crepúsculos, para a formação dos brasileiros, como indivíduos e sociedade.

Em tempos de emergência climática e insegurança alimentar, os quintais podem ajudar a tornar a mesa mais farta. Basta que sejam vistos.





Fonte: Neofeed

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