Os negócios familiares são um importante pilar da economia global. No Brasil, nove em cada dez empresas são empreendimentos passados de geração em geração. O modelo é responsável por 75% da força de trabalho do país e 65% do PIB nacional, apontam os dados mais recentes do IBGE.
Entre as grandes companhias familiares, um dos maiores entraves não é a baixa resiliência para acompanhar um mundo em constante transformação, tampouco a falta de rigor organizacional. O desafio permanente de sobrevivência é, sim, a sucessão, como mostra o economista Marcelo Silva, em seu mais recente livro: Empresas Familiares — A construção da perpetuidade.
Aos 73 anos, nascido em Palmares, no interior pernambucano, o autor fala com (muito) conhecimento de causa. Ao longo de 50 anos, ele trabalhou em algumas das maiores empresas familiares do Brasil.
Como CEO do Magazine Luiza, entre 2009 e 2015, Silva coordenou o processo de transferência de comando de Luiza Helena Trajano para o filho Frederico. Hoje, Silva é vice-presidente do conselho de administração da companhia e conselheiro de outras tantas companhias, como Movida e Raia Drogasil.
Depois de se formar em economia pela Universidade Federal de Pernambuco, Silva passou sete anos na consultoria Arthur Andersen. De lá, foi para a rede de supermercados Bompreço, com forte presença no nordeste.
Já em São Paulo, no início dos anos 2000, assumiu o comando da Casa Pernambucanas. O sucesso à frente da companhia da família Lundgren chamou a atenção de Luiza Helena Trajano, que o convidou para trabalharem juntos.
Por onde passou, Silva deixou sua marca pessoal: a combinação entre o respeito à tradição e o entusiasmo pela inovação. No mercado, costuma-se dizer: o que o executivo não sabe sobre empresa familiar ninguém precisa saber, pois não é relevante.
Definido por Frederico Trajano como uma “magnífica aula sobre a magia da gestão em empresas familiares”, o livro é a terceira obra do autor. Antes dele vieram Gente não é salame, de 2009, e O que a vida me ensinou — Sempre vale a pena acreditar e apostar nas pessoas, de 2013.
“Meus conhecimentos foram adquiridos na convivência com as pessoas, sobretudo no ambiente das companhias concebidas e mantidas pelo esforço familiar”, diz Silva.
Empresas Familiares — A construção da perpetuidade é um misto de memórias com uma rigorosa pesquisa e análise de estudos relacionados ao tema. Silva parte das primeiras experiências de produção familiar no período neolítico, há dez mil anos, para chegar à atualidade.
“Nesta escrita, o que é mais complexo acaba explicado na mais espantosa simplicidade. A gente saboreia, aprende e se inspira”, lê-se em depoimento da empresária Luiza Trajano, no livro.
Na conversa com o NeoFeed, o executivo fala ainda sobre gestão, cultura e sucessão, além de desmistificar antigos conceitos que sempre rondaram os negócios familiares.
Veja a seguir, os principais trechos da entrevista:
Tem sentido a máxima de que na história de uma empresa familiar “o pai constrói, o filho usufrui e o neto destrói”?
Muitas vezes é o que acontece, sim. Pesquisas globais indicam que cerca de 50% das empresas familiares chegam à segunda geração e 10% à terceira geração. Mas, por outro lado, existem muitas empresas que conseguem atravessar gerações.
O que faz o sucesso de uma sucessão?
Em cada capítulo do livro, destaco os principais pontos de aprendizado e reflexão que contribuem para a perpetuidade das empresas familiares. Entre eles: a preservação do carisma e dos valores do fundador; os cuidados com a chegada de profissionais do mercado mesclando com os “pratas da casa”; a introdução de controles internos sólidos, na medida do crescimento da empresa; foco no cliente e na introspecção da cultura dos valores, da inovação e da governança corporativa dentro da organização; além dos cuidados quando da necessidade de abertura de capital ou da introdução de investidores na empresa.
O principal problema então é a falta de um plano de sucessão bem definido?
Sim, é preciso cuidar de adotar e executar um processo sucessório consistente, que transmita segurança ao sucessor, ao sucedido e a todos os stakeholders da empresa. Na prática, não existe um passo a passo rigoroso com data de iniciar o processo — o ideal é começar o mais cedo possível. O sucedido precisa perceber a necessidade de iniciar a sucessão e contar com o desejo firme de um sucessor da família em participar desse processo. Uma coisa é o ciclo da vida de uma empresa sob o comando único do fundador, a primeira geração. Outra coisa é o início da dispersão de liderança para vários sucessores. Mais crítico ainda, além da dispersão de comando, é a dispersão da prática dos valores emanados do fundador.
Você poderia citar exemplos de negócios brasileiros que acabaram por causa de sucessões mal conduzidas?
Pelo histórico disponível na literatura, podemos listar alguns como Grupo Matarazzo, Mappin, Mesbla, Arapuã, Grupo João Santos [de Pernambuco] e muitos mais. Geralmente, as empresas familiares padecem por questão sucessória.
Empresas familiares costumam ser alvo de um preconceito simplista, são consideradas antagônicas às corporações profissionalizadas e ignoradas por supostamente inibirem o estímulo à meritocracia.
Não tenho nada contra as “corporations”. Elas existem e são fruto de um crescimento extraordinário, o que as leva a serem incorporadas por outras maiores, que, por sua vez, são controladas por grandes fundos de investimento. Geralmente, são movidas, com exceções, por resultados de curto prazo para remunerar os acionistas e executivos. Dificilmente, mantêm a visão de longo prazo das empresas familiares.
Mas há espaço para os negócios familiares no mundo das grandes corporações?
As chances de sobrevivência das empresas familiares são grandes. Como disse, desde que o processo de transição entre as gerações seja bem estruturado, consistente, verdadeiro, onde as qualificações dos sucessores sejam devidamente considerados pelos sucedidos. Ao invés de recomendar concessões, prefiro indicar que o processo de sucessão seja bem claramente definido, executado com serenidade, onde as qualificações, principalmente comportamentais de liderança, sejam devidamente consideradas.
Como foi a transição de comando do Magazine Luiza?
A partir do momento em que percebi a sinceridade do processo, neste caso através de Luiza Helena, nunca duvidei de que a sucessão não seria bem-sucedida. Como se tratava de uma “ponte” entre a segunda e a terceira gerações, procurei exercer essa missão cuidadosamente e considero que fomos muito bem-sucedidos. A sucessão no Magazine Luiza foi considerada genuinamente primordial para a continuidade da empresa.
A sucessão deve incluir uma geração de cada vez?
Geralmente, a sucessão passa de uma geração para a seguinte. Nada impede, no entanto, a inclusão de uma geração seguinte, desde que não haja um sucessor imediato, com aptidão e desejoso efetivamente em participar do processo de sucessão.
E sobre o sucessor ter de começar sempre de baixo?
Há, realmente, um conceito usual em que o sucessor começa de baixo, percorre diversas áreas da empresa, faz curso no exterior… Tudo isso é importante, desde que o sucessor tenha as habilidades de liderança, principalmente as comportamentais, necessárias para ele vir a exercer o comando da empresa.
Seu livro mostra como é importante o esforço de educação empreendedora dentro das famílias.
A minha missão sempre foi formar pessoas, compartilhar conhecimentos e experiências. Com o término da minha carreira de executivo, resolvi me dedicar mais ainda em retribuir os ensinamentos que recebi durante a minha vida profissional para outras pessoas. Considero que, além do propósito pessoal, trata-se de um dever contribuir para o desenvolvimento das pessoas que nos cercam, seja através de conselhos de administração, palestras, seminários e livros, como este. Nesta etapa da vida, meu propósito tem sido cada vez mais o de “servir e compartilhar”.