É comum ver obras de arte adornando abóbadas e paredes laterais de teatros. A Ópera de Paris, por exemplo, exibe um afresco do bielorrusso Marc Chagall (1887-1985). O Theatro Municipal do Rio de Janeiro ostenta pinturas do italiano Eliseu Visconti (1866-1944). Apesar de impactantes, esses trabalhos são, em essência, decorativos.
Quando a paulista Sandra Cinto foi convidada para desenvolver uma arte que preenchesse a Grande Sala do Teatro Cultura Artística, na capital paulista, onde ocorrem concertos de câmara, ela se perguntou como poderia fazer para que sua criação contribuísse para a acústica do espaço.
“Não adiantava a obra ser bonita se a acústica não fosse boa. Meu trabalho precisaria servir à música”, explica Sandra, em conversa com o NeoFeed. Da concepção inicial até o primeiro concerto teste na sala, realizado recentemente, transcorreram sete anos de pesquisas e ajustes.
O objetivo era que o Projeto Sonho não apenas embelezasse a Grande Sala, mas também permitisse que o público ouvisse cada nota tocada no auditório com a máxima clareza. “Quando tivemos o ensaio na sala, perguntei ao maestro se o som estava bom e ele confirmou que sim”, lembra Sandra. “Foi um momento muito emocionante.”
O trabalho da artista de 56 anos é amplamente reconhecido por seu estilo gráfico, com desenhos minuciosos de mares e cosmos. Para que sua instalação cumprisse a função acústica desejada, ela precisou abrir mão de parte do gestual que lhe é característico.
“Eu queria desenhar com mais curvas, algo mais fluido, que fosse mais gráfico. Mas não adiantava insistir em traços que prejudicassem a música que será tocada na sala”, diz.
Ao longo do processo, Sandra descobriu que o gesso e as linhas mais simples favorecem a acústica. E assim nasceram as cerca de 500 peças que decoram as paredes da Grande da Sala.
“Eu pensava muito no som se dissipando, em como ele reverbera em nosso corpo, toca nossas emoções e mexe com nossas memórias”, conta. “São formas que podem ser nuvem, água, energia ou até uma representação do próprio som. Trabalhei com formas curvas, quase abstratas, para não prender a obra em uma única imagem, deixando-a aberta a múltiplas interpretações do público de acordo com a música que for tocada ali.”
Sandra se sentiu como uma espécie de ponte, entre o mundo da alta tecnologia da engenharia acústica e o “fazer artesanal do ofício de gesseiro”.
Sintonia cromática
Em seus estudos, a artista escolheu um tom de amarelo que evocasse a aura de um templo — “um templo para a música”, como define. Durante o período de recuperação do Cultura Artística, devastado por um incêndio em 2008, os restauradores fizeram uma descoberta interessante.
As cores originalmente escolhidas pelo arquiteto Rino Levi (1901-1965), responsável pelo projeto do teatro, incluíam um amarelo semelhante ao escolhido por Sandra. As cores que revestiam as paredes internas do prédio dialogam com o mural de Di Cavalcanti (1897-1976) na fachada. “Tem toda uma harmonia cromática. Algo muito característico deste período dos anos 1950”, detalha Sandra.
Durante os sete anos dedicados à criação da obra, a artista participou de algumas reuniões com a empresa responsável pela parte acústica, muitas delas no café do Lincoln Center, complexo artístico em Nova York. Sempre que estava lá, seus olhos se voltavam para os murais O Triunfo da Música e As Fontes da Música, pintados por Marc Chagall no foyer da Metropolitan Opera House.
Inspirada por aqueles trabalhos , Sandra propôs a criação de algo especial também para o foyer do Cultura Artística. Dessa vez, porém, ela pôde utilizar todo o seu gestual característico para criar Melodia para as Estrelas, duas tapeçarias feitas à mão.
A escolha da técnica foi cuidadosamente pensada para trazer conforto acústico ao espaço do café. “Como é uma área onde as pessoas irão socializar, nos intervalos ou na entrada, era essencial ter um material que ajudasse a evitar a reverberação do eco. A tapeçaria ajuda a absorver o som”, explica.
A artista tem grande apreço por projetos que dialogam com a arquitetura. Em 2022, desenhou os ladrilhos que revestem a parte externa e a piscina do terraço do sofisticado hotel Rosewood, em São Paulo. Em 2011, criou o mural Céu e Mar para Presente (Japonismo), na área da piscina do Sesc Santo André.
Sandra, aliás, mantém uma relação íntima com a cidade e com espaços, que oferecem aos moradores uma programação de atividades voltadas para o esporte, a arte e a educação.
Entre fitas, bolas e desenhos
Nascida em Santo André, no ABC paulista, Sandra, quando criança, sonhava em ser bailarina. Filha de um operário, sua mãe, com recursos limitados, não podia arcar com uma escola de balé.
No entanto, um dia, no Sesi da cidade, Sandra viu uma mulher tocando piano e meninas em movimento de dança que se assemelhavam ao balé. Era uma aula de ginástica rítmica. Ela matriculou Sandra, que se envolveu com o esporte dos 6 aos 18 anos. Só deixou a ginástica ao ter de decidir qual faculdade cursar.
“Eu queria muito ser professora, e poderia ser de educação física ou artística”, conta. Ela optou pela última, com a intenção de se tornar professora de artes. Na faculdade, se interessou pelo desenho e pela pintura, e começou a enviar seus trabalhos para salões de arte.
Logo no começo da carreira, em 1992, realizou suas duas primeiras exposições individuais: uma no Centro Cultural São Paulo (CCSP) e outra na Galeria Espaço Alternativo, no Rio de Janeiro. Em 1996, iniciou a colaboração como ilustradora nas páginas do jornal Folha de S. Paulo. No ano seguinte, recebeu o Prêmio Aquisição no Salão de Arte Contemporânea Victor Meirelles. “Quando eu vi, me tornei artista”, reflete Sandra.
Seu trabalho, porém, espelha muito do que aprendeu no tapete das competições de ginástica rítmica. O gesto corporal ao desenhar nas paredes, a atenção ao equilíbrio, e o movimento das linhas e pontos lembram a fluidez da bola e da fita em uma coreografia.
“Eu resolvi a dança no desenho. Quando trabalho nas paredes, é uma atividade extremamente corporal. Pois fico andando, subindo em escadas e andaimes. Às vezes, o gesto é quase como uma coreografia. E também penso muito na relação entre o observador e os trabalhos que crio”, diz Sandra.
A imprescindível união entre artistas
Suas obras, hoje, integram importantes coleções nacionais e internacionais, incluindo: Museu de Arte de São Paulo (MASP); Inhotim – Centro de Arte Contemporânea, Brumadinho; National Gallery, Washington D.C.; Fundación ARCO, Madrid; Boston Institute of Contemporary Art, Boston; e Museum of Modern Art, Nova York, entre outras.
Ao lado do marido, o também artista Afonso Albano, Sandra dirige o Projeto Fidalga. Criado em 1998, inicialmente, como uma forma de gerar renda extra através de aulas de desenho e pintura, o programa evoluiu para se tornar um espaço dedicado a promover o trabalho de artistas emergentes.
Hoje, o Projeto Fidalga realiza residências, exposições e trocas com instituições internacionais. “Por meio desses intercâmbios, surgem relações e projetos, e vamos criando uma rede de amigos ao redor do mundo e um suporte mútuo entre os artistas”, explica ela.
Talvez Sandra tenha aprendido algo nas aulas de ginástica rítmica que se reflete em sua abordagem ao Projeto Fidalga. Assim como na ginástica, na arte é crucial que o grupo permaneça unido e em sintonia. Como aconteceu também no Cultura Artística.
Inaugurado em nas noites de 8 e 9 de março de 1950, com concerto da Orquestra Sinfônica do Estados de São Paulo, regido por Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Camargo Guarnieri (1903-1997), o teatro foi fundamental para a internacionalização da cultura paulistana.
Localizado na região central da capital, foi erguido no terreno onde funcionava o Velódromo Paulistano, um dos estádios de futebol mais antigos do Brasil, aberto em 1896.
Pertencente à Sociedade Cultura Artística, lançada em 1912, a casa de espetáculos nasceu nos saraus realizados, ao longo de 38 anos, nas residências da elite econômica e cultural de São Paulo.
Fechado desde o incêndio de 2008, depois de uma reforma estimada em R$ 150 milhões, o Cultura Artística será finalmente devolvido à cidade no domingo, 25 de agosto.