O fim do “hype” da Aspiration, a fintech verde que conquistou Hollywood e as altas finanças globais

O fim do “hype” da Aspiration, a fintech verde que conquistou Hollywood e as altas finanças globais


A investigação da fintech Aspiration Partners, pelo Departamento de Justiça e pela Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos, ilustra à perfeição o poder do marketing ambiental — e como a prática do greenwashing pode levar uma empresa à derrocada.

Lançada em 2015, em Los Angeles, na Califórnia, por Andrei Cherny e Joseph Sanberg, a startup prometia negócios capazes de mudar os rumos da crise climática. Seu slogan: “Limpo e rico é o novo podre de rico”.

O primeiro produto da Aspiration foi um cartão de débito. Quem usasse o dinheiro de plástico (reciclado, claro) e escolhesse arredondar a compra para o dólar mais próximo, com o “troco”, ajudaria a plantar uma árvore. Apenas em 2020, teriam sido 35 milhões de mudas.

Depois, Cherny e Sanberg criaram um fundo 100% livre de combustíveis fósseis. Ficariam de fora do portifólio até as companhias prestadoras de serviços para a indústria de petróleo e gás — e de quebra, as fabricantes de armas de fogo e todas as companhias com mais de 5% de suas vendas provenientes de bebidas alcoólicas, tabaco, energia nuclear, jogos de azar e pornografia.

Em seguida, a fintech entrou também no mercado de créditos de carbono, prometendo ajudar as empresas a mitigar suas emissões de carbono, mediante o financiamento de projetos de captura do gás.

“O hype em torno da Aspiration é implacável”, definia, em setembro de 2021, Scott Galloway, professor da Escola de Negócios Stern, da Universidade de Nova York, e guru do Vale do Silício. No artigo Jumping the SPAC, publicado em seu site, ele lembra a badalação em torno da startup.

A revista Fast Company a considerou uma empresa com potencial para “mudar o mundo”. Por quatro anos consecutivos, a fintech figurou na lista das melhores da Certified B Corporation. E apareceu no ranking da Inc. como um dos 25 negócios mais disruptivos do planeta.

Tamanha adulação fez os olhos dos investidores brilhar. E, ao longo de uma década, a Aspiration levantou cerca de meio bilhão de dólares.

Entre seus apoiadores, celebridades e nomes das altas finanças globais, como os atores Leonardo DiCaprio, Orlando Bloom e Robert Downey Jr., a empresária e ex-modelo Cindy Crawford, o rapper Drake e o bilionário Steve Ballmer, presidente da Microsoft, entre 1998 e 2014.

Corria tudo tão bem que, em agosto de 2021, a Aspiration anunciou planos de abrir capital — via uma associação com o SPAC Interprivate III financial Partners Inc., com uma avaliação de US$ 2,3 bilhões.

Certo de seu sucesso, Cherny, redator dos discursos do ex-presidente Bill Clinton, se animou e hoje concorre ao Senado pelo estado do Arizona, como o “candidato pró-clima”. Ele tem o apoio do antigo chefe e outros tantos democratas.

Pura fumaça

“Mudar a mudança climática (Change climate change). Isso seria incrível”, alfineta Galloway, no artigo.

Seria, sim, não fosse um porém: as promessas da Aspiration eram pura fumaça. Depois de ouvir 28 ex-funcionários e vários clientes empresarias, além de analisar uma batelada de documentos internos da startup, a plataforma Bloomberg Green revelou recentemente os bastidores da derrocada da startup.

O alerta soou no fim de 2020, com a criação do braço corporativo da startup. “Em um ano, esta nova unidade saltou para mais da metade das vendas da Aspiration — respondendo por US$ 56 milhões dos US$ 100 milhões em receitas reportadas em 2021”, informa a reportagem. “Mas o crescimento explosivo nos novos negócios foi impulsionado em parte por negócios duvidosos que inflacionaram os lucros da empresa.”

E pensar que uma de suas primeiras propagandas convidava: “Conheça a Aspiration, o pior pesadelo da ganância de Wall Street”.

Joseph Sanberg (à esquerda) e Andrei Cherney começaram a operar a Aspiration em 2015 (Crédito: Reprodução alumni.harvard.edu)

Em artigo de 2021, Scott Galloway classificou a proposta da Aspiration como uma ficção” e “uma viagem de ayahuasca”

“Deixe seu banco mudar o mundo” era uma das propagandas da fintech (Crédito: Reprodução aspiration.com)

Do fim de 2020 a agosto de 2021, o número de clientes corporativos foi de dois para 34, conforme relatório da Aspiration a investidores, apresentado à Comissão de Valores Mobiliários. No mesmo documento, a fintech projetava para 2023 atrair 150 companhias para o negócio.

Até hoje a maioria das contratantes da startup nunca foi revelada, embora alguns fossem conhecidos, como o time de basquete Los Angeles Clippers, a gigante de consultoria Deloitte e um número incomum de celebridades colombianas, entre elas um ator, uma ex-miss e vários jogadores de futebol aposentados.

Uma das “empresas parceiras ” havia sido criada anonimamente, no período da assinatura do contrato.

Alguns dos acordos eram altamente suspeitos. Uma sinagoga de Beverly Hills, na California, por exemplo, deveria pagar US$ 25 mil mensais para a startup. A conta de uma ONG com a startup era quase dez vezes maior do que a receita anual da entidade.

Os acordos envolviam sobretudo a revenda de serviços de reflorestamento, executados por terceiros. Enquanto as empresas pagavam US$ 1 por árvore para a fintech, a ONG Eden Re Forest, responsável pelo plantio, cobrava da Aspiration entre 10 a 20 centavos por muda, informa a Bloomberg Green.

Árvores plantadas X árvores a serem plantadas

A fintech sempre teve por hábito aumentar a escala de seus negócios, mostra reportagem da plataforma ProPublica, de novembro de 2021, intitulada The Celebrity-backed green fintech company tha isn’t as as it seems: “Muitas das alegações da Aspiration parecem fracassar em algum lugar entre o marketing e as notas de rodapé de seus documentos legais”.

À época, a startup gabava-se de “5 milhões de membros apaixonados”. Mas, as letras miúdas de uma apresentação para investidores explicavam que qualquer pessoa que tivesse assinado a proposta de abertura de conta era considerada “membro apaixonado” — mesmo que nunca tivesse de fato se tornado cliente.

Em junho de 2021, os usuários ativos da Aspiration não chegavam a 600 mil. A fintech inflou também os dados de árvores plantadas. Em 2020, orgulhoso, o então CEO Cherny alardeou o plantio de 35 milhões de plantas, em webcast, no qual anunciou a intenção de fazer o IPO.

Não era bem assim. Na lógica da startup “o número de árvores plantadas é o total de árvores a serem plantadas”, tentaria consertar o cofundador, em nota para a ProPublica,  Àquele momento, apenas 12 milhões de mudas haviam sido de fato semeadas.

Até o portifólio “100% livre de combustíveis fósseis” não era assim tão limpo. As ações da Southwest Airlines, por exemplo, compunham quase 3% do fundo — as de energia sustentável somavam 2,3%.

Uma sombra

Hoje, pouco mais de dois anos depois do hype, a Aspiration é uma sombra do que era.

Entre dezembro de 2022 e abril de 2023, em duas levas de demissão, dispensou 280 de seus  400 funcionários. A fintech enfrenta, no mínimo, seis processos movidos por dívidas não pagas. “Inadimplente”, a empresa “não tem meios razoáveis de se tornar lucrativa”, segundo ação judicial movida pelo Inherent Group.

A startup nega as acusações, garante estar contribuindo com as autoridades americanas e se recuperando financeiramente da crise.

Depois de ter sido adiada três vezes, a tão sonhada abertura de capital foi sepultada em agosto de 2023, quando a Interprivate III Financial Partners Inc. desfez o acordo com a Aspiration, por justa causa.

Com a medida, a SPAC pode receber US$ 7 milhões em multa de rescisão, além de uma participação acionária de US$ 13 milhões, segundo o acordo assinado por ambas as empresas em julho de 2022.

Duramente atingida em sua reputação, dificilmente a Aspiration voltará a convencer alguém de que o consumismo pode de alguma forma ajudar a combater o  aquecimento global. Uma estratégia tão fantasiosa, diz Galloway,  quanto “uma “ficção” — ou “uma viagem de ayahuasca”.



Fonte: Neofeed

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