Quando o artista cearense Sérvulo Esmeraldo (1929-2017) ia a São Paulo, sempre visitava o amigo e também artista Guto Lacaz. Em uma dessas visitas, Esmeraldo contou sobre um projeto recém-realizado: um cilindro transparente com um ventilador na base, que fazia objetos flutuar no ar. “Um dia, quero fazer isso também”, anunciou Guto, com o brilho da inspiração nos olhos.
Anos depois, em 2024, ele finalmente concretizou a ideia e deu-lhe o nome de Volare. A peça é uma das cerca de 170 obras da exposição Cheque-Mate, em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo.
A montagem da peça, pela primeira vez, não deu certo: os objetos caíam do cilindro quando o ventilador era ligado. “Eu me esqueci de perguntar ao Sérvulo como prender os objetos lá dentro”, lembra Guto, em conversa com o NeoFeed.
Determinado a resolver o desafio, ele decidiu usar cabos de aço para manter os objetos no lugar. Funcionou. Mas, Guto não ficou contente: as peças de papelão lhe pareceram muito precárias. Seu assistente então as refez, agora com material biodegradável e impressora 3D. “O que era papelão se transformou em algo de altíssima tecnologia”, celebra o artista.
A história de Volare reflete bem o processo criativo de Guto. Ele se apropria de ideias observadas em trabalhos de outros artistas e em objetos do cotidiano para recriá-las à sua maneira. E tem certeza de que errar é parte fundamental do processo.
“Todo mundo que cria algo — seja artista, escritor ou cientista — enfrenta erros. Você começa a trabalhar e a obra afunda, explode, rasga e tem de recomeçar”, afirma. “O erro é um grande professor.”
Quando viu trabalhos de Lygia Clark (1920-1988) em uma foto de jornal, onde uma linha branca se destacava sobre um fundo preto, Guto também quis recriar essa ideia à sua maneira.
Eletrolinhas, de 2004, estava guardada em sua casa há 20 anos e é exibida pela primeira vez também na exposição de agora. “O trabalho dela [Lygia Clark] é em baixo-relevo, o meu é em alto-relevo. Faço essas adaptações para o meu universo”, explica.
“Humor rápido, quase surrealista”
Sempre interessado em como as coisas funcionam, desde a juventude, Guto adora desmontar aparelhos. Por isso, fez o colegial técnico em engenharia eletrônica. “Eu adoro eletrônica, mas é para quem tem cabeça de matemático”, conta. Ele então foi estudar arquitetura.
“A arquitetura me salvou”, completa. Na faculdade, ele conheceu o que define como “mundos das artes”, mas nunca pensara em ser artista. Formado, montou escritório e virou artista por acidente, como gosta de dizer.
Em 1978, ao ver um anúncio do concurso Objeto Inusitado, Guto decidiu enviar uma escultura que havia criado em 1970, durante os tempos de faculdade. Ele venceu a competição e só então de reconheceu como artista. “Agora preciso estudar”, pensou. “E foi uma delícia. Descobri uma área onde eu podia fazer tudo o que quisesse”, lembra.
Como artista, Guto realmente não hesitou e explorou tudo. Criou desenhos, pinturas, pequenos objetos e grandes instalações, como a escultura cinética Pororoca, que abre a exposição no 1º andar do centro cultural. Ele também realizou performances, algumas delas exibidas na TV Gazeta, a convite do apresentador Serginho Groisman.
Marcada por uma descoberta atrás de outra, a década de 1980 foi particularmente profícua. Em 1982, realizou sua primeira exposição individual, Ideias Modernas, e, no ano seguinte, participou da 18ª Bienal Internacional de São Paulo.
Em 1988, esteve na coletiva Brazil Projects, no MoMA PS1, em Nova York. Em uma reportagem sobre a exposição, o jornal americano The New York Times destacou: “Nas construções dadaístas de Guto Lacaz, há uma característica adicional da arte brasileira: um humor rápido, quase surrealista”.
O humor é uma das características mais marcantes de seu trabalho. É difícil apreciar sua arte sem esboçar um sorriso. “Na minha família, todo mundo é palhaço”, brinca ele. “Por sorte, consegui transmitir isso para os meus trabalhos. Foi algo natural. O mundo da arte, às vezes, é muito bonito, mas também pode ser muito sisudo. Fora as meninas de Velásquez e a Monalisa, ninguém sorri.”
Cotidiano ressignificado
Guto tem o poder de olhar para os objetos cotidianos e transformá-los em obras de arte, graças a um método que ele chama de “convivência lúdica”. O artista retira um objeto de seu uso cotidiano e convive com a peça para investigar outras possíveis relações que ela pode suscitar.
“Virei um obsessivo em estabelecer relações entre objetos, cores, formas, espaços, produtos, palavras e ironias”, costuma dizer. “É uma maneira bastante rica de viver: observar, processar a ação observada e desenvolver um novo produto.”
Foi assim, por exemplo, que transformou um rolo de papel higiênico e um filtro de café em abajur.
“Nessa convivência, percebo o quanto o papel higiênico é injustiçado”, ressalta. “Ele é tão bonito como objeto. Sua proporção forma um cubo perfeito. Além disso, é macio e conforta você na depressão. Depois de desenrolado, pode-se olhar através dele como uma luneta. Ele merecia mais destaque nas residências, como um Brancusi.”
O romeno Constantin Bracusi (1876-1957) é tido como o precursor da escultura moderna, ao reduzir as formas a seus elementos essenciais. Daí a comparação de Guto.
Na exposição, os curadores Rico Lins e Kiko Farkas deram um lugar especial à luminária. Em um espaço escuro, sobre uma base alta e com uma iluminação especial, no centro da última sala , sobre o processo criativo de Guto, o abajur de papel higiênico com filtro de café brilha.
“Não queríamos apenas fazer uma mostra com obras do artista. Nosso objetivo era apresentar sua produção de forma transversal”, explica Rico Lins, ao NeoFeed. A dupla organizou a mostra de maneira que o visitante comece com uma visão geral da produção de Guto e, gradualmente, se aproxime dos detalhes mais íntimos de seu trabalho.
Embora seja muito celebrado entre seus pares, os curadores sentiram que Guto, aos 76 anos, estava afastado do circuito e que precisavam “mostrar quem ele é”.
“Estávamos interessados em contar a história do Guto, como ele faz e pensa arte”, diz Farkas, em entrevista ao NeoFeed.
Ainda que a exposição dê conta da ambição da dupla, foi lançado, na plataforma Itaú Play, o documentário Guto Lacaz: um olhar iluminado, com direção de Marcelo Machado.
É divertido acompanhar as sacadas brilhantes do artista que acredita piamente nunca ter inventado nada: “Tudo que faço é coisa que já vi”.
Mas, ninguém vê como ele. E é ai que está a força de sua arte. Seu olhar ressignifica o mundo — a partir até de um rolo de papel higiênico.