O novo museu da herdeira do Bradesco

O novo museu da herdeira do Bradesco


Há cerca de dois anos, quando foi convocado para conceber a curadoria de um museu dedicado a automóveis antigos, em Campos do Jordão, no interior paulista, o designer, cenógrafo e diretor artístico Gringo Cardia recebeu o convite com estranheza e até certo enfado.

Nada afeito a carros — “não conheço nem as marcas”, diz ao NeoFeed —, ele aceitou conhecer a coleção com mais de 500 modelos, em sua maioria do século 20, dos quais uma centena deveria ser exibida, de forma rotativa, em exposições de longa duração.

A coisa mudou de figura quando Cardia se deparou com um DKW-Vemag Belcar, de 1963, no mesmíssimo tom verde do modelo que havia pertencido à sua família, durante sua infância, em São José dos Pinhais, no Paraná.

“Fiquei emocionado. Lembrei-me de meu pai guardando dinheiro para comprá-lo. E me dei conta de que a emoção seria o principal ativo para o museu acontecer. Cada um dos carros tem uma história, e as pessoas os reconheceriam, fossem de um filme ou de seu próprio passado, de sua família”, afirma o designer, cenógrafo e diretor artístico.

Nascia, então, o CARDE (pronuncia-se cardê), acrônimo formado pelas palavras “carro”, “arte”, “design” e “educação”. Por trás do museu está a Fundação Lia Maria Aguiar (FLMA), instituição filantrópica criada por Lia, 86 anos, filha do banqueiro e fundador do Bradesco Amador Aguiar.

Os planos originais envolviam a criação de um Museu do Automóvel Antigo, com carros doados por Lia, por Luiz Goshima, conselheiro e membro honorário da FLMA, e por seu pai, o empresário e também colecionador Luiz Harunari Goshima, morto em setembro do ano passado.

Lia, cuja fundação arrematou, em um leilão ocorrido em novembro do ano passado, a coleção particular de Emanoel Araújo, artista visual e idealizador do Museu Afro Brasil, pretendia inicialmente criar entidades distintas, uma delas dedicada somente a seu acervo de arte.

Com o CARDE, optou-se por uma nova configuração, em que as obras de arte, os automóveis e ainda mobiliários seriam apresentados em diálogo, referindo-se a fatos históricos do Brasil e, ainda no contexto das ideias preliminares de Lia, recuperando e valorizando a memória das culturas que formaram o País, “a brasilidade representada por imigrantes, por indígenas, pela população afro”, reforça Goshima, em entrevista ao NeoFeed.

Cardia, que concebeu a curadoria do Memorial Casa do Rio Vermelho, aberto em 2014 na antiga residência de Zélia Gattai e Jorge Amado, em Salvador, vinha fazendo nos últimos trabalhos museológicos com caráter mais imersivo e audiovisual, a exemplo da Casa do Carnaval da Bahia, inaugurado em 2018. Com o CARDE, tinha o desafio de equacionar a materialidade dos automóveis e obras de arte com suas experiências com conteúdos digitais.

“Logo pensei que seria legal, porque tem muita gente que vem pelo objeto, pelos carros. Mas, com estas raridades, a gente captura um monte de pessoas que, ao vir aqueles automóveis e obras de arte, vão também entender o contexto histórico em que foram feitos”, diz ele.

“Inacreditáveis” 10 km/h

O CARDE tem 6 mil metros quadrados e sua cenografia inclui painéis de LED com detalhes sobre o design dos carros e o pano de fundo de suas fabricações. Na cenografia, por exemplo, Cardia espelha movimentos arquitetônicos e artísticos refletidos nos projetos dos automóveis, do art nouveau e art déco à Bauhaus.

Há centenas de obras de arte, modernas e contemporâneas, espalhadas pelas nove salas temáticas, entre quadros, esculturas e gravuras, de nomes como Di Cavalcanti, Candido Portinari, Vik Muniz e Yutaka Toyota, entre outros, além de mobiliários de José Zanine Caldas.

Para criar os nexos históricos, Cardia convidou Heloisa Starling, escritora, professora e coordenadora do Projeto República, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No museu, entre outros exemplos, ela lança mão do modelo De Dion-Bouton Vis-à-Vis, de 1902, para narrar um acontecimento insólito entre o jornalista e abolicionista José do Patrocínio (1853-1905) e um automóvel que comprara numa viagem a Paris.

Após desembarcar no Rio, Patrocínio convidou um de seus grandes amigos, o poeta Olavo Bilac (1865-1918), para dar uma volta em seu novo brinquedo. Bilac não se fez de rogado, pediu ao amigo para pilotar a máquina e pisou o pé na tábua, segundo Heloisa. Desembestado, o carro alcançou “inacreditáveis” 10 quilômetros por hora e chocou-se contra árvores. Ambos saíram ilesos.

“Existem dúvidas se o acidente aconteceu em Botafogo ou na Tijuca”, conta a historiadora, ao NeoFeed. “Mas uma coisa é certa: o primeiro acidente automobilístico no Brasil foi provocado por um grande poeta”.

O modelo De Dion-Bouton Vis-à-Vis, de 1902, foi comprado em Paris e levado para o Rio de Janeiro pelo jornalista e abolicionista José do Patrocínio. O amigo Olavo Bilac quis dirigir o automóvel. Acelerou e, a 10 km/h , perdeu o controle sobre o carro e bateu contra algumas árvores (Foto: CARDE)

A coleção do museu conta com carros doados por Lia Aguiar, Luiz Goshima e pelo pai dele, o empresário Luiz Harunari Goshima (Foto: CARDE)

Nos anos 1920, o empresário Henrique Lage, dono dos navios Ita, da Companhia Nacional de Navegação Costeira, deu de presente para sua amada, a cantora lírica Gabriella Besanzoni, um Isotta Fraschini tipo 8A Cabriolet D’Orsay fabricado na Itália em 1925 (Foto: CARDE)

Gringo Cardia recebeu o convite para fazer a curadoria do museu há dois anos (Foto: CARDE)

Foi esse DKW-Vemag Belcar, de 1963, que fez com que Gringo Cardia, que nunca foi ligado em carros, aceitasse fazer a curadoria do museu. Quando viu o veículo, lembrou-se da infância (Foto: CARDE)

Entre 1958 e 1967, foram produzidas pouco mais de 51 mil unidades do DKW-Vemag Belcar. Foi fabricada pela Vemag, sob licença da alemã DKW (Foto: CARDE)

A primeira sala do museu traz um Brasinca Uirapuru, de 1964, em uma sala quase toda recoberta por trabalhos de crochê (Foto: CARDE)

Um Lincoln K, de 1938, foi encomendado pelo ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros, e transportou chefes de Estado como Getúlio Vargas, Charles de Gaulle, a rainha Elizabeth 2ª e o papa João Paulo 2º (Foto: CARDE)

O modelo K do Lincoln era alardeado pela fabricante Ford como o carro americano com o refinamento das mais sofisticadas e exclusivas casas europeias (Foto: CARDE)

O CARDE conta com nove salas temáticas (Foto: CARDE)

Dos anos 1980, o Gurgel Itaipu E400 foi o primeiro carro elétrico brasileiro (Foto: CARDE)

Pela limitações tecnológicas da época, foram produzidas apenas 76 unidade do automóvel (Foto: CARDE)

A cenografia, do museu espelha movimentos arquitetônicos e artísticos refletidos nos projetos dos automóveis (Foto: CARDE)

Em homenagem ao piloto brasileiro Ayrton Senna, o McLaren Senna GTR foi lançado em 2018. O exemplar exibido no CARDE é um entre as 75 unidades produzidas – o único da América Latina (Foto: CARDE)

O CARDE ocupa uma espaço de 6 mil metros quadrados, em Campos do Jordão (Foto: Carde)

O Willys Interlagos foi um dos primeiros carros esportivos esportivo produzidos no Brasil, entre 1962 e 1966 (Foto: CARDE)

“Deixar esses carros e essas obras dentro de casa, de uma garagem ou um galpão, é uma coisa um tanto egoísta”, diz Goshima (Foto: CARDE)

O museu ocupa uma área de 6 mil metros quadrados. Na imagem, o café do CARDE (Foto: CARDE)

Pareadas com obras de arte, outras raridades do acervo automobilístico do CARDE ecoam fatos históricos curiosos. O museu apresenta, por exemplo, o modelo Isotta Fraschini, que o magnata Henrique Lage (1881-1941), dono dos navios Ita, da Companhia Nacional de Navegação Costeira, comprara nos anos 1920 para sua amada, a cantora lírica Gabriella Besanzoni (1888-1962).

Em tempo: sobrinha-neta de Gabriella, a escritora Marina Colasanti contou, em seu livro Vozes de Batalha, de 2021, essa história de amor que envolveu também a construção, para Gabriella, da mansão do Parque Lage, que futuramente abrigaria a Escola de Artes Visuais. De lá, saíram expoentes de arte contemporânea brasileira, como Beatriz Milhazes e Daniel Senise.

O “nosso” elétrico

Também estão em exibição um Lincoln K, de 1938, encomendado pelo ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros, e que transportou chefes de Estado como Getúlio Vargas, Charles de Gaulle, a rainha Elizabeth 2ª e o papa João Paulo 2º.

Vale também destacar dois modelos que refletem o empreendedorismo brasileiro na indústria automotiva, como o Gurgel Itaipu E-400 (1981) e o Gurgel MotoMachine (1991), do empresário João do Amaral Gurgel (1926-2009), acompanhados de uma vasta documentação adquirida pela instituição. Assim como carros marcados no imaginário dos brasileiros, como o Willys Gordini (1962), o Romi-Isetta 300 De Luxe (1959) e a Rural Willys 4×2 Luxo (1968), entre outros.

Como o acrônimo de CARDE indica, o museu vai refletir as ações nos campos de cultura, educação, saúde e desenvolvimento social promovidas há 16 anos pela FLMA em Campos do Jordão. Para tanto, um prédio vizinho ao museu irá abrigar um centro de pesquisa e referência dedicado a automóveis, design e história do Brasil. O complexo tem também uma escola de reparo automotivo, entre outras iniciativas.

Tendo em mente que apenas uma fração dos 500 automóveis estarão presentes nesta primeira exposição de longa duração, impossível segurar a curiosidade quanto ao que ainda está por vir.

Diretor-executivo do CARDE, Luiz Goshima é dono de quase todos os Fuscas em exibição. Ele adianta que ambas as coleções — de arte e automóveis — continuarão em expansão e serão incorporados paulatinamente ao museu.

“Deixar esses carros e essas obras dentro de casa, de uma garagem ou um galpão é uma coisa um tanto egoísta”, afirma ele, que é sócio-fundador da gestora Meraki Capital.

“Mas a rotatividade vai depender um pouco do termômetro das visitações, do interesse do público. A partir daí vamos ver que novas mostras podemos montar. Mas uma coisa é certa: o trabalho do Gringo e da professora Heloisa é um casamento que tem começo e meio, mas não tem fim”, complementa.





Fonte: Neofeed

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