Bolsa de valores “overnight”: faz sentido o Brasil seguir uma tendência global de negociação 24h?

Bolsa de valores “overnight”: faz sentido o Brasil seguir uma tendência global de negociação 24h?


A Securities and Exchange Commission (SEC, a xerife do mercado de capitais) aprovou o pedido da startup 24X Exchange para lançar a primeira bolsa de valores sem interrupção de funcionamento em território americano. A princípio, o funcionamento será 23h em dias úteis.

Essa foi a segunda tentativa da startup apoiada pelo fundo Point72 Ventures, do bilionário Steve Cohen, de obter autorização para lançar uma bolsa 24 horas. Em 2023, a 24X Exchange retirou o pedido em razão de problemas técnicos e operacionais.

Desta vez, a startup deu mostras de que sua infraestrutura está mais robusta e a decisão do regulador pode impactar tanto NYSE e Nasdaq, as maiores bolsas americanas, como ter repercussão global. A princípio, a infraestrutura está sendo preparada para uma sessão noturna entre domingo e quinta-feira.

“É uma decisão de negócio se iremos estender nosso horário de funcionamento ou não. O que posso dizer é que não parece uma oportunidade robusta”, diz Andrew Oppenheimer, head de desenvolvimento de negócios e estratégia da Nasdaq, ao NeoFeed. “O volume de negócios que ocorre das 4h às 9h30 no pré-market é muito limitado, apenas algumas dezenas de milhares de ações, nada significativo. No after-market é ainda menor.”

A NYSE rodou uma pesquisa no primeiro semestre deste ano com os participantes do seu mercado para entender o interesse em negociar ações overnight. Houve uma tendência de comparação com o mercado ininterrupto de negociação de criptomoedas e o aumento da atividade de investidores americanos de varejo após a pandemia para defender o não fechamento da bolsa.

Sua subsidiária, a NYSE Arca, a principal bolsa para transação de ETFs, mas que também tem listadas ações e opções, entrou com um pedido no fim de outubro deste ano para aumentar sua operação de 16 horas para 22 horas por dia, em cinco dias por semana. A pausa ficaria entre 23h30 e 1h30 no horário local.

“As criptos só mostraram que as pessoas desejam ter a possibilidade de consumir produtos financeiros e tomar decisões financeiras em diferentes momentos”, diz Marcos Boschetti, CEO e cofundador da Nelogica, uma fintech brasileira que desenvolve softwares de negociação eletrônica e outras tecnologias para o mercado financeiro. “É uma adaptação a um padrão de consumo, de mudanças de comportamento sócio-demográficos que estamos passando.”

Os argumentos a favor de uma bolsa ininterrupta passam pelo alinhamento com a natureza global da economia, com mercados cada vez mais interligados e com a capacidade de atrair investidores em qualquer fuso horário. Além disso, há uma crença de redução da volatilidade nas aberturas dos mercados – vide o exemplo de agosto deste ano com o pânico nas bolsas asiáticas se refletindo em todo o mundo.

Por outro lado, os argumentos contra a abertura 24 horas incluem a isonomia para todos os investidores: volatilidade de preços fora do pregão tradicional pode prejudicar os desinformados. Além disso, há preocupação dos reguladores sobre possíveis movimentações atípicas de ativos e as respectivas investigações. Sem falar no papel das câmaras de compensação que precisam de prazo e tempo para cruzar a movimentação em todo o ecossistema.

O NeoFeed conversou, nos últimos dias, com diferentes agentes de mercado brasileiro para entender se esse mesmo caminho de bolsa de valores aberta 24 horas em 5 dias da semana (chamado de 24×5) deve ser seguido no País.

É preciso destacar que tanto a bolsa de valores como o regulador do mercado brasileiro estão atentos a essa movimentação.

“Com a devida atenção que o assunto merece, temos que pensar em possibilidades de ampliação do horário de funcionamento dos mercados no Brasil, inclusive, compreendendo que esta ação deve ser vista como uma ferramenta de inclusão”, escreveu, em nota ao NeoFeed, João Pedro Nascimento, presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

“Realizada de maneira organizada, uma eventual ampliação pode vir a ser sinônimo de democratização e de empoderamento do investidor. Adicionalmente, uma eventual ampliação posicionaria o mercado brasileiro de maneira ainda mais presente e próximo do eixo de grandes mercados internacionais”, complementa.

Na B3, o horário regular de negociação do mercado à vista é das 10h às 18h. Mas às 9h30 todo o mercado de ações começa a funcionar para o cancelamento de ordens e a pré-abertura. No fim do pregão, o after-market vai até às 18h45 para as ações.

Em nota, a B3 reafirmou seu compromisso em discutir e promover com o mercado e os reguladores a agenda sobre ampliação do horário de negociação. “Acreditamos que a extensão do horário de negociação poderá trazer mais dinamismo e oportunidades para todos os participantes do mercado”, informa o texto enviado ao NeoFeed.

Neste ano, a B3 cogitou ampliar o funcionamento do mercado local, com início entre 6h e 7h e término às 22h. Inicialmente, essa extensão de negociação seria somente para os mercados futuros, ou seja, os contratos de mini dólar e mini índice, que correspondem a uma fração dos contratos futuros cheios de dólar e de Índice Bovespa.

“Neste momento, é desnecessário para o mercado brasileiro. A liquidez está baixa e vai espalhar essa pouca liquidez em mais períodos”, diz Marcelo Cerize, CEO e fundador da Lev, corretora voltada para investidores institucionais. “Se a bolsa for por esse caminho deve dar a opção da corretora participar ou não. Obrigar todo mundo é uma loucura.”

No mercado local, as corretoras independentes cabem em uma mão. O aumento de custos em um momento em que as margens estão apertadas causa preocupação.

Corretores, dealer e brokers em geral têm de manter um time de atendimento a postos para fazer o monitoramento dos riscos, garantir as margens e evitar qualquer tipo de problema sistêmico. Ao contrário dos criptoativos, a bolsa de valores é um mercado regulado com pesada supervisão regulatória.

“O sistema atual comporta uma bolsa 24 horas. O principal entrave talvez seja não se pagar porque o pool é muito pequeno”, diz André Duvivier, CEO e fundador da SL Tools, uma plataforma para negociações eletrônicas de valores mobiliários e ativos financeiros. “Mas essa é uma discussão ruim neste momento porque o Brasil está totalmente fora do radar do investidor estrangeiro. E o volume da bolsa local está em queda.”

Em 2024, o volume médio diário de negociação da B3 está em R$ 23,4 bilhões, 6,2% menor do que o registrado em 2023 – o mercado brasileiro chegou a negociar perto de R$ 30 bilhões. E o saldo dos estrangeiros era negativo em pouco mais de R$ 24,9 bilhões até 26 de novembro.

“Se há uma extensão no horário e não se tem um aumento do volume transacionado, a negociação fica mais dispersa, causando uma menor profundidade de oferta, e com isso a formação de preços fica deteriorada”, afirma Francisco Gurgel, fundador da Flowa Technologies, nova marca da antiga ATG. “O horário de negociação fica alargado com os mesmos investidores, com o mesmo volume, piorando a qualidade do mercado.”

Novos entrantes e novas tecnologias

A Flowa projeta o lançamento da nova bolsa de valores, no Rio de Janeiro, para o fim de 2025. A marca será Base Exchange e oferecerá serviços de negociação à vista de ações, aluguel e fundos.

O projeto da Base não prevê negociação fora dos horários convencionais. A Flowa não conduziu nenhum estudo para avaliar a demanda dos investidores brasileiros por horários estendidos, por isso prefere não avaliar se o modelo teria aderência por aqui. Mas há uma tendência no mundo que foi reforçada pelas casas de apostas esportivas.

“As bets são 24h e a atenção dos investidores, especialmente de varejo, se voltam para as bets, com um volume muito grande de apostas”, diz Gurgel.

Ao contrário da nova bolsa, a Nelogica vem detectando padrões de uso no Brasil que demonstram um potencial para uma extensão do horário de funcionamento do mercado. Segundo dados da fintech, cerca de 2,5 milhões de ordens de derivativos, índice e dólar são geradas por dia em ambiente de simulação em suas plataformas fora do horário de pregão.

Com relação às criptomoedas, a empresa levantou que no horário noturno (entre 20h e 23h horário de Brasília), o bitcoin em dólar tem o volume médio que representa mais de 200% em relação ao volume das 18h.

Já o ethereum em dólar tem o volume médio triplicado na comparação com às 18h. Os volumes registrados no pós-pregão representam em torno de 135%-165% mais que no horário comercial. A Nelogica usou a base de dados dos portais CoinMarketCap, CoinGecko e CoinTrade Monitor.

“No mercado de ações e opções, existem milhões de ordens de simulador pós-encerramento do pregão. São pessoas estudando, testando, se familiarizando com o mercado. Vendo o padrão de consumo, faz sentido ter esses sistemas [rodando mais tempo]”, afirma Boschetti.

Para duas startups ouvidas pelo NeoFeed que estão em período de conquista das licenças do Banco Central para atuar como custodiante ou clearing do mercado, a infraestrutura atual do mercado brasileira exige altos investimentos para aceitar essa nova realidade global.

Se as novas entrantes já nascem preparadas, falta a adaptação dos que já estão no mercado, principalmente quando se trata das janelas de liquidação. Hoje, os prazos do mercado local são D+1 ou D+2. Seria preciso adotar uma “liquidação atômica” para diminuir a possibilidade de risco sistêmico.

“A negociação 24 horas é uma tendência ou o Brasil vai crescer só com o dinheiro interno?”, questiona esse empreendedor. “Mas os sistemas precisam estar prontos para liquidar como o PIX, imediatamente.”

O mundo não para

As bolsas de valores nos Estados Unidos querem avançar em qualquer time zone para conquistar o investidor asiático. A ideia vai além: capturar o interesse de mais empresas do Oriente listarem ações no mercado de maior liquidez do mundo.

“Os investidores asiáticos e de varejo estão animados com essa possibilidade e gostariam que isso fosse adotado por bolsas reguladas, então estão fazendo pressão para isso acontecer porque se sentiriam mais confortáveis para operar com regulação”, disse Oppenheimer, da Nasdaq.

No fim dos anos 1990, o Bank of America trabalhou em parceria com uma mesa de operações em Hong Kong para dar liquidez aos papéis da Vale no mercado asiático. Dessa forma, as ADRs (recibos de ações da empresa brasileira em Nova York) da mineradora brasileira tinham fluxo de quase 24 horas por dia, atendendo tanto o investidor ocidental como o oriental.

“Ativos globais, como o bitcoin, com alguém dando liquidez, fazem sentido. É o caso de commodities como o minério de ferro, que permitem trades 24 horas”, afirma Duvivier.

Na Europa, essa discussão não tem ganhado eco. As bolsas europeias não querem investir em infraestrutura para atender investidores do continente americano. Para eles, só o europeu, que pega parte das negociações na Ásia, está de bom tamanho.

Até agora, “Wall Street, o dinheiro nunca dorme” era apenas o nome do filme que trouxe de volta à cena o personagem Gordon Gekko. A SEC já decidiu que o título do filme passa a ser vida real para a bolsa de valores. Resta saber quem vai seguir esse caminho.





Fonte: Neofeed

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